Filosofia do Gato

Olho para o meu gato e medito. Medito teologias. Diziam os teólogos de séculos atrás que a harmonia da natureza deve ser o espelho em que os seres humanos devem buscar suas perfeições. O gato é um ser da natureza. Olho para o gato como um espelho. Não percebo nele nenhuma desarmonia. Sinto que devo imitá-lo. 

Camus observou que o que caracteriza os seres humanos é a sua recusa a serem o que são. Eles não estão felizes com o que são. Querem ser outros, diferentes. Por isso somos neuróticos, revolucionários e artistas. Do sentimento de revolta surgem as criações que nos fazem grandes. Mas nesse momento eu não quero ser grande. Quero simplesmente ter a saúde de corpo e de alma que tem o meu gato. Ele está feliz com a sua condição de gato. Não pensa em criações que o farão grande. 

Deitado ao lado do aquecedor (que manhã mais fria!), ele se entrega, sem pensar, às delícias do calor macio. Nesse momento, ele é um monge budista: nenhum desejo o perturba. Desejos são perturbações na tranquilidade da alma. Ter um desejo é estar infeliz: falta-me alguma coisa, por isso desejo… Mas para o meu gato nada falta. Ele é um ser completo. Por isso pode se entregar ao calor do momento presente sem desejar nada. E esse “entregar-se ao momento presente sem desejar nada” tem o nome de preguiça. Preguiça é a virtude dos seres que estão em paz com a vida.

Por pura brincadeira, escrevi um livrinho sobre demônios e pecados. Os demônios continuam soltos pelo mundo do jeito que sempre estiveram. Só que agora fazem uso de disfarces. Até se rebatizaram com nomes diferentes, científicos. Lidando com os demônios, usei palavras filosóficas e psicanalíticas de exorcismo. Lidando com os pecados, usei palavras éticas de condenação. Tudo ia muito bem até que cheguei ao pecado da preguiça. Preguiça é fazer nada. Nossa tradição religiosa nada sabe da espiritualidade oriental do taoísmo, que faz do “fazer nada”, wu-wei, a virtude suprema.

E aí, então, aquilo que deveria ser uma condenação do pecado da preguiça virou um elogio às delícias e virtudes da preguiça. Alguém disse que preferia os gatos aos cachorros porque não há gatos policiais. Policiais existem para fazer cumprir a lei, o dever. Dentro de mim, desgraçadamente, mora aquele cão policial a que Freud deu o nome de superego: ele rosna ameaças e culpas todas as vezes em que me deito na rede.

Meu gato, na sua imperturbável preguiça, me dá uma lição de filosofia. Não me dá ordens. Ele deve ter aprendido do Tao-Te-Ching, que diz que o homem verdadeiramente bom não faz coisa alguma… Estou velho e quero que me seja dado o privilégio de me entregar à filosofia do meu gato: fazer nada. Com consciência limpa, repetir com Fernando Pessoa: “Ai que prazer não cumprir um dever. Ter um livro para ler e não o fazer…”.

Assim, proponho que se acrescente aos direitos humanos já escritos, um outro, para os velhos: “Todos os velhos têm o direito à felicidade da preguiça”. Pois, como o Riobaldo disse: “Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso…”.

Assim, “vou descansar meu fardo no chão, À margem do rio… Não vou mais me preocupar com a guerra… Vou pôr no chão minha espada e meu escudo, À margem do rio…”.

Rubem Braga

Avareza?
Ah, as complexidades do amor e das finanças, não é mesmo? Quem diria que uma conta bancária poderia causar mais drama do que um episódio de novela? Vamos falar sobre aquele momento peculiar em que um dos parceiros decide que é melhor guardar um segredo financeiro como se fosse a receita secreta da Coca-Cola. Sim, estamos falando daquele súbito “ganho” financeiro que aparece sem aviso e some mais rápido do que você consegue dizer “consciência limpa”.
Ora, por que alguém esconderia uma quantia expressiva de dinheiro do seu parceiro, aquela pessoa com quem prometeu dividir até a última fatia de pizza? Só pode ser avareza, medonha e brilhante! Quem nunca sonhou em ser o próximo Tio Patinhas, nadando em uma piscina de moedas douradas enquanto o parceiro acredita que o orçamento está apertado? Ah, a doce ilusão de comprar um iate invisível ou um castelo inflável que nunca verá a luz do dia.
Mas talvez a razão seja mais complexa. Medo de perder? Talvez o pavor de que, ao revelar o tesouro escondido, o olhar do parceiro se transforme no de um dragão faminto, pronto para consumir todo o ouro. É como se confessar fosse abrir a porta para uma auditoria doméstica com mais críticas do que elogios.
E é claro, a boa e velha falta de confiança. Porque afinal, todos sabemos que a base de um relacionamento saudável é a capacidade de esconder pequenos segredos triviais, como uma micro transação de loteria vitoriosa ou aquele investimento que, “ah, não tem importância, querido(a)”.
A verdade é que, no fundo, somos todos um pouco como piratas emocionais, navegando nas águas turvas do matrimônio, escondendo nossos mapas do tesouro. No fim das contas, basta lembrar que a riqueza verdadeira não está no saldo bancário, mas nas risadas compartilhadas e nas ironias da vida a dois.
Sem esquecer, claro, de guardar os comprovantes. Pode ser que venha a calhar.
                                                                                                                        Reginaldo Araujo
Desculpem!

Queridos leitores,

Gostaríamos de pedir sinceras desculpas pela ausência de postagens nas últimas semanas. Infelizmente, enfrentamos um problema técnico que nos forçou a tomar medidas drásticas, incluindo a troca do servidor de hospedagem. Estamos cientes de que a falta de atualizações pode ter gerado preocupação, e agradecemos pela paciência demonstrada durante esse período.
Trabalhamos incansavelmente para restabelecer a normalidade do nosso blog e trazer conteúdos de qualidade que vocês tanto apreciam.
Fiquem atentos, ainda hoje teremos um post inédito.
Agradecemos a compreensão de todos.
Reginaldo Araujo
Historinha

PREMONITORIO

 

Do fundo de Pernambuco, o pai mandou-lhe um telegrama: Não saia casa 3 outubro abraços.

O rapaz releu, sob emoção grave. Ainda bem que o velho avisara: em cima da hora, mas avisara.

Olhou a data: 28 de setembro. Puxa vida, telegrama com a nota de urgente, levar cinco dias de Garanhuns a Belo Horizonte! Só mesmo com uma revolução esse telégrafo endireita. E passado às sete da manhã, veja só; o pai nem tomara o mingau com broa, precipitara-se na agência para expedir a mensagem.

Não havia tempo a perder. Marcara encontros para o dia seguinte, e precisava cancelar tudo, sem alarde, como se deve agir em tais ocasiões. Pegou o telefone, pediu linha, mas a voz de d. Anita não respondeu. Havia tempo que morava naquele hotel e jamais deixara de ouvir o “pois não” melodioso de d. Anita, durante o dia. A voz grossa, que resmungara qualquer coisa, não era de empregado da casa; insistira: “como é?”, e a ligação foi dificultosa, havia besouros na linha.

Falou rapidamente a diversas pessoas, aludiu a uma ponte que talvez resistisse ainda uns dias, teve oportunidade de escandir as sílabas de arma virumque cano, disse que achava pouco cem mil unidades, em tal emergência, e arrematou: “Dia 4 nós conversamos”.

Vestiu-se, desceu. Na portaria, um sujeito de panamá bege, chapéu de aba larga e sapato de duas cores levantou-se e seguiu-o. Tomou um carro, o outro fez o mesmo. Desceu na praça da Liberdade e pôs-se a contemplar um ponto qualquer. Tirou do bolso um caderninho e anotou qualquer coisa. Aí, já havia dois sujeitos de panamá, aba larga e sapato bicolor, confabulando a pequena distância. Foi saindo de mansinho, mas os dois lhe seguiram na cola. Estava calmo, com o telegrama do pai dobrado na carteira, placidez satisfeita na alma.

O pai avisara a tempo, tudo correria bem. Ia tomar a calçada quando a baioneta em riste advertiu: “Passe de largo”; a Delegacia Fiscal estava cercada de praças, havia armas cruzadas nos cantos. Nos Correios, a mesma coisa, também na Telefônica. Bondes passavam escoltados. Caminhões conduziam tropa, jipes chispavam. As manchetes dos jornais eram sombrias; pouca gente na rua. Céu escuro, abafado, chuva próxima. Pensando bem, o melhor era recolher-se ao hotel; não havia nada a fazer.

Trancou-se no quarto, procurou ler, de vez em quando o telefone chamava: “Desculpe, é engano”, ou ficava mudo, sem desligar. Dizendo-se incomodado, jantou no quarto, e estranhou a camareira, que olhava para os móveis como se fossem bichos. Deliberou deitar-se, embora a noite apenas começasse. Releu o telegrama, apagou a luz. Acordou assustado, com golpes na porta. Cinco da manhã. Alguém o convidava a ir à Delegacia de Ordem Política e Social. “Deve ser engano.” “Não é não, o chefe está à espera.” “Tão cedinho? Precisa ser hoje mesmo? Amanhã eu vou.” “É hoje e é já.” “Impossível.” Pegaram-lhe dos braços e levaram-no sem polêmica. A cidade era uma praça de guerra, toda a polícia a postos.

“O senhor vai dizer a verdade bonitinho e logo” — disse-lhe o chefe. — “Que sabe a respeito do troço?” “Não se faça de bobo, o troço que vai estourar hoje.” “Vai estourar?” “Não sabia? E aquela ponte que o senhor ia dinamitar, mas era difícil?” “Doutor, eu falei a meu dentista, é um trabalho de prótese que anda abalado.

Quer ver? Eu tiro.” “Não, mas e aquela frase em código muito vagabundo, com palavras que todo mundo manja logo, como arma e cano?” “Sou professor de latim, e corrigi a epígrafe de um trabalho.” “Latim, hem? E a conversa sobre os cem mil homens que davam para vencer?” “São unidades de penicilina que um colega tomou para uma infecção no ouvido.” “E os cálculos que o senhor fazia diante do palácio?” Emudeceu. “Diga, vamos!” “Desculpe, eram uns versinhos, estão aqui no bolso.” “O senhor é esperto, mas saia desta. Vê este telegrama? É cópia do que o senhor recebeu de Pernambuco. Ainda tem coragem de negar que está alheio ao golpe?” “Ah, então é por isso que o telegrama custou tanto a chegar?” “Mais custou ao país, gritou o chefe. Sabe que por causa dele as Forças Armadas ficaram de prontidão, e que isso custa cinco mil contos? Diga depressa.” “Mas, doutor…” Foi levado para outra sala, onde ficou horas. O que aconteceu, Deus sabe. Afinal, exausto, confessou: “O senhor entende conversa de pai pra filho? Papai costuma ter sonhos premonitórios, e toda a família acredita neles. Sonhou que me aconteceria uma coisa no dia 3, se eu saísse de casa, e telegrafou prevenindo. Juro!”.

Dia 4, sem golpe nenhum, foi mandado em paz. O sonho se confirmara: realmente, não devia ter saído de casa. 

Carlos Drumond de Andrade

Lançado em 1978, 70 historinhas reúne a prosa já publicada por Drummond em outros livros. São crônicas e contos – ou “cronicontos” – em que a observação caminha junto com a fabulação, o humor roça cotovelos com o lirismo e a crítica aparece arejada pelo deboche. Treze das histórias deste livro têm crianças e adolescentes como personagens, sem que o autor se preste a infantilizá-las, pela paródia da linguagem ou pelo primarismo das ações. Pelo contrário, elas enfrentam, contestam e vencem, muitas vezes, os detentores da autoridade, com a inteligência e a argúcia a que recorrem para desafiar-lhes o poder. Mais um lance de gênio de um dos mais importantes autores brasileiros de todos os tempos.

POEMA SOBRE A VELHICE

A literatura e a poesia, têm esse dom, de nos fazer imortais. Hoje trago ao blog, o imortal José Saramago

Quantos anos eu tenho?
O que importa isso?
Tenho a idade que escolho e que sinto!
A idade em que posso gritar sem temor o que penso,
fazer o que desejo sem receio de errar,
pois trago comigo a experiência dos anos vividos
e a força inabalável das minhas convicções.

Não importa quantos anos tenho,
não quero saber disso!
Alguns dizem que estou velho,
outros afirmam que estou no auge.
Mas não são os números que definem a minha vida,
não é o que dizem,
mas sim o que o meu coração sente
e o que a minha mente dita.

Tenho os anos suficientes para gritar minhas verdades,
fazer o que quero,
reconhecer velhos erros,
corrigir rotas e valorizar vitórias.
Já não preciso ouvir:
“Você é jovem demais, não vai conseguir”,
ou “Você está velho demais, o seu tempo já passou”.

Tenho a idade em que as coisas são vistas com serenidade,
mas com o desejo incessante de continuar crescendo.
Tenho os anos em que os sonhos
podem ser tocados com os dedos,
e as ilusões se transformam em esperança.

Tenho os anos em que o amor,
às vezes, é uma chama ardente,
ansiosa para se consumir no fogo de uma paixão.
Outras vezes, é um porto de paz,
como o pôr do sol que se reflete nas águas tranquilas do mar.

Quantos anos eu tenho?
Não preciso contar,
pois os desejos que alcancei,
os triunfos que obtive,
e as lágrimas que derramei pelas ilusões perdidas,
valem mais do que qualquer número.

O que importa se fiz cinquenta, sessenta ou mais?
O que realmente importa é a idade que sinto,
a força que tenho para viver sem medo,
seguir meu caminho com a experiência adquirida
e o vigor dos meus sonhos.

Quantos anos eu tenho?
Isso não importa!
Tenho os anos suficientes para não temer mais nada,
e para fazer o que quero e sinto.
A idade? Não importa quantos anos ainda tenho,
porque aprendi a valorizar o essencial
e a carregar comigo apenas o que realmente importa!

José Saramago

José de Sousa Saramago 
(Azinhaga, Golegã, 16 de novembro de 1922,Tías, Lanzarote, 18 de junho de 2020 foi um escritor português. Galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efetivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa. A 24 de Agosto de 1985 foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada e a 3 de Dezembro de 1998 foi elevado a Grande-Colar da mesma Ordem, uma honra geralmente reservada apenas a Chefes de Estado.
: A título póstumo, em 2021, no âmbito da abertura oficial das comemorações do centenário do seu nascimento, foi condecorado com o grau de Grande-Colar da Ordem de Camões por “serviços únicos prestados à cultura e à língua portuguesas”, o primeiro membro titular desta ordem honorífica recém-instituída.

Fonte: Wikipedia

 

TRADUZIR-SE

Hoje, quem comparece é Ferreira Gullar, com um poema que muito tem a ver comigo, pois me revela (ou traduz?).

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

Ferreira Gullar

Ferreira Gullar nasceu em São Luís, em 10 de setembro de 1930, com o nome de José Ribamar Ferreira. É um dos onze filhos do casal Newton Ferreira e Alzira Ribeiro Goulart.

Em 1956 participou da exposição concretista que é considerada o marco oficial do início da poesia concreta, tendo se afastado desta em 1959, criando, junto com Ligia Clark e Hélio Oiticica, o neoconcretismo, que valoriza a expressão e a subjetividade em oposição ao concretismo ortodoxo.
Posteriormente, ainda no início dos anos de 1960, se afastará deste grupo também, por concluir que o movimento levaria ao abandono do vínculo entre a palavra e a poesia.
Em 2014, ele foi considerado um imortal na Academia Brasileira de Letras.

Ferreira Gullar morreu em 4 de dezembro de 2016, na cidade do Rio de Janeiro em decorrência de vários problemas respiratórios.

Weekend Top

1

O tempo e as jaboticabas

 

“Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui
para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquela menina que
ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ela chupou displicente,
mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.
Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem
eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos.
Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para
reverter a miséria do mundo. Não quero que me convidem para eventos de
um fim de semana com a proposta de abalar o milênio.
Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir
estatutos, normas, procedimentos e regimentos internos.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
da idade cronológica, são imaturos.
Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de
“confrontação”, onde “tiramos fatos a limpo”.
Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo
de secretário geral do coral.
Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: “as pessoas não
debatem conteúdos, apenas os rótulos”.

Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa…
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com
triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua
mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja tão
somente andar ao lado de Deus.
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade, desfrutar desse amor
absolutamente sem fraudes, nunca será perda de tempo.
O essencial faz a vida valer a pena.”

Rubem Braga

2

Olhando para o tempo

Eis que, chegando aos 70 anos, fui visitar o tempo.  Olhando para trás, lembrando todas as “tribos”, nos dois lados do atlântico, que tive a felicidade de conhecer e participar de seus “rituais”.

Pensei em todas buscas, anseios, pensei na vontade com a qual buscava beber a vida avidamente. Constatei que algumas vezes esbanjei sem cuidado o tempo que dispunha.

Então eu lembrei de um texto  do Rubem Braga, que se encaixa perfeitamente a esse meu momento. Tudo que eu pretendo dizer, foi dito por ele, e muito bem dito. 

Então leiam o Rubem Braga, no próximo post.

RA

3

A Clarice que eu quero ser

Hoje o texto que coloco aqui no blog é da Clarice Lispector, que fico bobo de ler!

Das vantagens de ser bobo.

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.
O bobo é capaz de ficar sentado, quase sem se mexer por duas horas. Se perguntando por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando.”
Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem.
Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas.
O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.
O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.
Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e, portanto, estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.
O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu.
Aviso: não confundir bobos com burros.
Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: “Até tu, Brutus?
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu.
Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.
Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.

Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.
Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.
É quase impossível evitar excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

Clarice Lispector

 

4

Mano

Hoje o post é dedicado ao amigo irmão Manoel Neto, poeta e historiador, admirado e amado por muitos na Bahia, e muito particularmente por mim.

A desenho poema que ilustra o post, fi-lo no ano de 2002, ainda vivendo no outro lado do Atlântico, em terras lusitanas. E ainda se passariam sete anos para que eu retornasse ao Brasil. E então cá chegando tive uma curiosa reação, um receio do reencontro com esse meu irmão. Passados 11 anos receava que essas nossas novas personas pudessem causar algum tipo de decepção.

Então entrou em cena a querida amiga Gal, irmã do poeta que tratou de resolver esse impasse buscando o fazimento deste reencontro, inclusive envolvendo outros amigos pois recebi então uma mensagem da querida Maria Celeste, informando que Manoel estava tentando falar comigo . Daí se quebrou o impasse.

Regi Araujo