Sonho

Noite passada tive um sonho: Encontrava, assim sem mais nem menos, a Clarice! Claro que fiquei em êxtase, mas recompus-me logo! Afinal não ia ficar feito bobo frente a Clarice Lispector! Mas ela muito gentilmente, vendo a minha aflição, veio até mim e disse: “Olá, posso lhe ajudar em alguma coisa?”. Eu imediatamente, querendo aproveitar esse momento único pedi-lhe que me ensinasse o que fazer para ser feliz. Ela sorriu, e me disse: “senta-te e tomas nota”. Me acomodei imediatamente e tomando emprestado a um anjo que por ali passava, caderno e uma caneta (no sonho podemos tudo). Então eis o que ela me ditou:

APRENDENDO A VIVER

Thoreau era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.
Thoreau, por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas «melhore o momento presente», exclamava. E acrescentava: «Estamos vivos agora.» E comentava com desgosto: «Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar.»
A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é que você existe.
Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.
Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de nós.
Por exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores mas que contemporizavam — ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos ou trabalhos — ele mandava ir agora para o quarto e começar a escrever.
Impacientava-se também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. «É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber.»
E dizia esta coisa forte que nos enche de coragem: «Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os portões e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?» Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade percorrer-me o sangue. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio instante.
Thoreau achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: «A opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos.» É verdade: mesmo as pessoas cheias de segurança aparentem julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas. E isso, na opinião de Thoreau, é grave, pois «o que um homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino».
E, por mais inesperado que isso seja, ele dizia: tenha pena de si mesmo. Isso quando se levava uma vida de desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco menos de dureza para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma covardia desnecessária. Nesse caso devia-se abrandar o julgamento de si próprio. «Creio», escreveu, «que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força. E repetia mil vezes aos que complicavam inutilmente as coisas — e quem de nós não faz isso? —, como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas: simplifique! simplifique!

Clarice Lispector (A descoberta do mundo)

 

BIA

Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Cecilia Meireles

Kiko

Continuando a homenagem aos netos hoje é vez de Francisco (Kiko).

A Língua de Nhem

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.
E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também
a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,
e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,
ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Cecilia Meireles

 

Cecília Meireles (1901 – 1964) foi uma poeta, pintora, jornalista e professora brasileira nascida no Rio de Janeiro. A autora publicou o seu primeiro livro de poemas, Espectros, em 1919. Esse foi o começo de sua carreira literária, bem recebida pelos seus pares.
Uma das vertentes mais fortes e reconhecidas do seu fazer poético é a sua literatura infantil. Em 1924, Cecília Meireles lançou a sua primeira obra dirigida ao público mais jovem, Criança, Meu Amor, em prosa poética.

Meus Netos

Hoje decidi dedicar a semana a meus netos, João Lucas, Francisco e Beatriz

Então, já nessa segunda-feira vou buscar a companhia do poeta Jorge Medauar.

MEU NETO

Jorge Medauar

Ergo-te agora em meus cansados braços,
que tanto labutaram nesta vida.
E sinto que me aflora aos olhos baços
a gota de uma lágrima furtiva.

Bem sei que por misteriosos laços
minha vida na tua está contida.
E quando me descubro nos teus traços,
quero que tudo em mim renasça e viva.

Mas sei que vou partir, quando amanheces.
É fatal que se cumpra a lei da vida.
Enquanto digo adeus, vives e cresces.

Assim, pouco me importa esta partida,
se em meu lugar tu ficas, permaneces
para que em teu sorriso eu sobreviva.

 

 

Jorge Emílio Medauar, nasceu em Água Preta do Mocambo, sede do então distrito de Ilhéus, hoje cidade e município de Uruçuca. Descende de pais sírio-libaneses. É da chamada “Geração de 45”.

Em 1959 foi galardoado com o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro na categoria “Contos/crônicas/novelas”, mesmo ano que Jorge Amado ganho na categoria romance.

Foi diretor geral da sucursal paulista de “O Globo” e, no Rio, secretário da revista Literatura. Era membro da Academia de Letras de Ilhéus e da Academia de Letras do Brasil, com sede em Brasília.

Fonte: Academia Líbano Brasileira de Letras, Artes e Ciências

 

INSANO

Hoje os versos são meus e a imagem é de uma pintura também de minha autoria. O titulo do post foi herdado da pintura.

Vida,
Tempo,
Morte.
Outra vida,
Outro tempo,
Outro ciclo.

Impressões,
De nossa passagem no mundo.
Recortes de lembranças.
Sombras do tempo.

Agora, essa dor,
Profunda, existencial.

Regi Araujo

Drummond

Hoje estive a visitar Drummond e como sempre perdi-me encantado com seus poemas e prosa. Drummond, mineiro de Itabira, transmutou-se em carioca sem deixar de ser mineiro, sempre voltava seu olhar para o universo da grande família, do pequeno comércio nas pequenas cidades.

“Quando eu nasci, um anjo
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.”

Dentaduras Duplas

Inda não sou bem velho
para merecer-vos…
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica?…)

Resovin! Hecolite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
engenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico,
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal sossegada…
A serra mecânica
não tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E a boca liberta
das funções poético-
sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.

Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdi.

Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes,secretas
no fundo de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de âmbar! de âmbar!
feéricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!

Carlos Drummond de Andrade

Mano

Hoje o post é dedicado ao amigo irmão Manoel Neto, poeta e historiador, admirado e amado por muitos na Bahia, e muito particularmente por mim.

A desenho poema que ilustra o post, fi-lo no ano de 2002, ainda vivendo no outro lado do Atlântico, em terras lusitanas. E ainda se passariam sete anos para que eu retornasse ao Brasil. E então cá chegando tive uma curiosa reação, um receio do reencontro com esse meu irmão. Passados 11 anos receava que essas nossas novas personas pudessem causar algum tipo de decepção.

Então entrou em cena a querida amiga Gal, irmã do poeta que tratou de resolver esse impasse buscando o fazimento deste reencontro, inclusive envolvendo outros amigos pois recebi então uma mensagem da querida Maria Celeste, informando que Manoel estava tentando falar comigo . Daí se quebrou o impasse.

Regi Araujo